segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Carlos Sá - entrevista

Para começar, gostaríamos que explicasses aos nossos leitores e pelas tuas palavras em que consiste as Corridas de Montanha – Trail Running?

O trail running (ou corridas de montanha) são uma variante do atletismo que difere marcadamente no piso onde é praticado, bastante longe da pista convencional, e também da estrada. Geralmente desenrola-se em trilhos usados para caminhadas, single tracks nem sempre bem definidos, embora os corta-fogos não sejam incomuns. A principal característica desta modalidade é percorrer trilhos geralmente inacessíveis por estrada, e veículos motorizados, e muitas das vezes mesmo às bicicletas BTT. È comum existirem declives acentuados, e as paisagens percorridas são o mais diversificado que se possa imaginar, desde densas florestas a desertos, passagens estreitas, algumas vezes a exigir trepadas fruto dos acentuados declives.

Conta-nos como foi vencer a ultra-maratona dos Pirenéus, em França. Tinhas esse objectivo em mente?

Preparei muito bem esta competição e tencionava ter um bom resultado mas ganhar não me passava pela cabeça, era a minha primeira ultra de 160kms e não sabia como o meu corpo reagiria a tão grande esforço, embora acreditasse numa boa classificação.

O resultado foi excelente, mas como passaste as mais de 26 horas de prova? (gestão do esforço, dores, dormir, alimentação, logística…)

O resultado final foi excelente mas muito sofrido, metade dos participantes foram obrigados a desistir por várias razões acredito que a maioria destes desistentes não estavam tão mal como eu só não têm a mesma capacidade de sofrimento.

A minha vitória deve-se à boa gestão de esforço ganhava muito terreno nas subidas e geria bem as descidas que causam muitas mossas a nível muscular.

Esteve três noites sem dormir a prova partia às quatro da manhã e não consegui dormir nem por um segundo, depois corri o dia todo e a noite toda seguinte chegando à meta às sete da manhã, estas ultimas horas foram de enorme sacrifício estava um nevoeiro de tal forma serrado que não conseguia ver um metro à minha frente, era um esforço terrível manter os olhos abertos, na noite seguinte também não consegui dormir com o entusiasmo da vitória.

No que diz respeito à alimentação a organização tem ao dispor dos atletas abastecimentos de +/- 15 em 15kms, ai podemos comer desde sopa quente, massa esparguete, fruta variada, bolos, frutos secos, bebidas diversas, etc, podemos também abastecer as mochilas com esses alimentos porque por vezes fazer 15kms a subir montanha pode representar mais de duas horas.

Geri muito bem esta parte também, parei em todos abastecimentos em contra relógio claro mas tentei comer sempre, levei alguns alimentos comigo que já estou habituado nestes esforços extremos, prefiro carregar mais peso porque nunca sabemos se nos vamos dar bem com o tipo de barras energéticas e géis que as organizações nos vão disponibilizar.

Hoje estamos perante um super-ultra atleta mas nem sempre foi assim. Houve uma altura da tua vida que não praticaste desporto... Como foi a passagem da vida sedentária para uma vida desportivamente activa?

O mais difícil por vezes é tomares a decisão falta-nos um clic, o meu clic foi o João Garcia e ser outro exemplo para o meu filho, quero agora eu próprio ajudar outras pessoas a mudar de vida e tornar-se também elas vencedoras, todos nós temos um espírito aventureiro e objectivos só que andamos sempre a arranjar desculpas para dar razão à preguiça, custa muito nos primeiros meses mas depois os resultados de bem estar são de tal forma evidentes que o difícil e parar.

Como começou a paixão pela montanha e pela corrida?

Eu sou um homem da montanha, alpinista, Corredor, Escalador, etc….

Recordo que já em miúdo nem ouvia falar em corridas em Montanha mas os meus treinos eram praticamente todos no meio Montanhoso, acho que já nasci com o gosto pela natureza.

Em 2005 fiz uma Expedição de Montanha no Perú, no final desta começamos a planear para 2007 uma expedição à 6ª Montanha mais alta do Mundo (o Cho Oyu com 8201 metros), tinha que treinar mais e meti-me nas corridas em Montanha, comecei logo a ter bons resultados e nunca mais parei.

E daí a testares os teus limites em provas deste grau de dureza? Como foi essa evolução, o que te levou a enveredares por esta modalidade (trail) e por estas distâncias?

Em 2008 fiz a minha primeira Ultra a convite de um amigo, nunca tinha corrido a mítica distância da maratona mas aceitei logo o desafio, treinei 2 meses para a estreia e fiquei em segundo, fiquei de tal forma entusiasmado que queria-me testar em distâncias mais longas e mais duras.

Quando sentiste necessidade de treinar com acompanhamento (treinador)?

Conheci o Paulo Pires na Montanha, ele é fanático pelo montanhismo e fotografia, em várias actividades de alpinismo que realizamos juntos ele ficou fascinado com a minha actividade e como é formado em desporto de alto rendimento dispor-se a ajudar.

Senti a necessidade de sistematizar e rentabilizar o treino e tempo, com o objectivo de poder obter melhores resultados e conseguir gerir as 24h do dia entre treino, família, filhos, trabalho, associativismo (Amigos da Montanha) e recuperação. O trabalho com o meu treinador é baseado numa relação de amizade. Desenvolve comigo a gestão da carga/volumes, acompanhamento nutricional, concepção de estratégia competitiva, definição do planeamento anual e plurianual das provas e preparação psicológica.

Que trabalho desenvolves com o teu treinador? Qual a rotina de treino?

A metodologia de treino é baseada num treino diário de resistência de base e desenvolvimento do limiar anaeróbio. Comparativamente com os meus concorrentes (especialmente os espanhóis) os volumes de carga são significativamente menores, privilegiando-se o treino de qualidade nos regimes aeróbios e as minhas características, fisiológicas psicológicas e cognitivas.

Com um trabalho árduo e dois filhos, como geres o tempo para treinar?

De facto o trabalho é muito duro e ocupa-me 11 horas por dia entre viagem e horas de trabalho, chego a fazer mais de 100 kms por dia para o posto de trabalho.

Tenho tudo programado, saio às 7 da manhã para o trabalho na hora do almoço actualizo a página do facebook e caixa de emails, por volta das 18.30 vou treinar e a partir das 21h dedico-me à família.

Por vezes tenho afazeres no final do trabalho e só treino depois de estar com a família, pego no frontal e vou para o monte fazer o treino.

A família apoia-te?

Incondicionalmente, eles vibram com as minhas aventuras, a minha filha (Jéssica 5 anos) passa a vida a dizer a toda a gente: o meu pai é um campeão. Já o Bruno 11anos é muito reservado tal como eu.

Tento compensar o tempo que lhes roubo em fins-de-semana a acampar, bicicleta, escalar, caminhar, etc.

Sou um privilegiado, consegui arrastar toda a família para natureza e as actividades ao ar livre, difícil é arranjar tempo para tudo que queremos fazer, durante uma actividade já estamos a planear a seguinte, quando falo em família não me limito aos filhos e esposa é toda a família mesmo irmãos, cunhados, sobrinhos, pais, sogra, etc ….

Quais as dificuldades por ti sentidas para estares ao nível em que te encontras?

Friso q não tive apoio institucional durante este percurso, começam agora a surgir alguns. Os resultados alcançados devem-se ao meu trabalho, ao apoio da minha família e de alguns amigos. A vitória na GRP 2010 trouxe-me alguma visibilidade mediática, nomeadamente com artigos em revistas/jornais (VISÃO, Correio da Manhã, Jornal de Barcelos e Sport Life), na Rádio, no programa Mais Cedo ou Mais Tarde na TSF. E no canal de televisão Sport TV (reverso da Medalha) e SIC entrevistado pela jornalista Conceição Lino. Este mediatismo foi importante para valorizar os resultados alcançados. Contudo ainda não surgiram apoios para me permitir dedicar mais ao treino e assim tentar alcançar ainda melhores resultados para Portugal.

Terás certamente alguns apoios, é fácil para um atleta como tu, e ao teu nível, conseguir apoios para melhorares o teu desempenho desportivo?

Tenho algum apoio do meu clube (Amigos da Montanha), ajuda-nos no que pode, da minha amiga Maria Cunha fisiatra e a clínica Fisivida, faz o acompanhamento médico e de recuperação física. Tenho também o meu Amigo Rui Ribeiro, fã nº 1, que me ajuda na logística e gestão da página do Facebook e Blog.

Mas de resto é tudo à custa do meu trabalho, equipamento, produtos energéticos, viagens ao estrangeiro, etc.

Só para terem ideia gasto em média um par de sapatilhas por mês devido aos 700kms que faço em média mensal, fica muito caro mas sou a prova que mesmo ganhando um ordenado muito baixo e com despesas de casa e dois filhos é possível realizar os nossos sonhos.

Achas que os portugueses em geral, e as entidades de gestão desportiva em particular, reconhecem o trabalho que tens feito e os resultados que já alcançaste?

Os Portugueses em geral sim é incrível a quantidade de mensagens que recebo a cada vitória, vêem em mim uma fonte de inspiração o que me dá enorme orgulho e força para continuar mesmo com todas as adversidades existentes.

Já as entidades de gestão desportiva penso que nem sabem que eu existo.

Mudando um pouco o discurso, para além da preparação física, onde vais buscar a força psicológica para as provas mais duras? O que te move?

Move-me a superação, o desafio pessoal, ser um exemplo de orgulho e de carácter para a minha família, para os meus filhos e para os portugueses.

E demonstrar que nós, Portugueses, quando: pensamos e concebemos um projecto, decidimos fazer, correr riscos, revelamos humildade de aprender com os erros e com as vitórias, somos persistentes e resilientes... somos bons, temos êxito.

As características de um atleta (ultra) de maratonas de montanha são: capacidade de trabalho, inteligência, resiliência, humildade, paixão, dedicação...

Tens alguma fonte de inspiração?

A minha fonte de inspiração é a natureza bela e esmagadora das Montanhas e a minha Família, a Ana e os dois filhos.

Em que pensas durante as provas?

Como devem imaginar em mil e uma coisas mas tento-me abstrair disso, a concentração na prova tem que ser total, estar atento aos sinais que o nosso corpo nos vai dando e decidir se deve-mos andar mais rápido ou poupar energias, lembra-nos de hidratar e alimentar constantemente, concentração no trilho e estar atento ao desempenho dos outros colegas.

Costumo dizer que o sucesso de um ultra atleta é 60% de capacidade de sofrimento e superação 30% de treino e 10% de inteligência, estar atento a todos estes sinais e fazer um bom estudo prévio das provas.

Desistir nunca passa pela cabeça?

Desistir é a última das opções.

Nunca deixei de terminar uma prova e algumas vezes passo por grandes dificuldades como:

Em Outubro de 2009 numa prova de 81 kms nos Pirenéus em representação da Federação Portuguesa de Montanhismo e Escalada, sofro uma queda aos 15 kms e fico muito mal de uma perna, arrasto-me até ao abastecimento dos 20 kms onde tinha cuidados médicos, eles tratam-me a ferida mas ao proteger esta perna sobrecarrego a outra e logo começo com cãibras, mesmo assim consegui fazer mais de 60 kms nestas condições e terminar num honroso 14º lugar da geral, acho que nunca tinha sofrido tanto, mas valeu a pena, no inicio deram-me uma pulseira que tinha a seguinte mensagem (Where is the Limit) nem de propósito.

Já este ano fiz em menos de 2 meses 4 ultras maratonas, superação a traz de superação, na última Ultra Trail da Freita 70kms com muito desnível e um calor insuportável sofri imenso devido ao desgaste acumulado de provas e trabalho.

Nos 160kms do Grand Raid dos Pyrênêes consegui correr durante mais de 80kms com os pés completamente em ferida devido a umas palmilhas anti-choque que optei levar, os médicos ficaram horrorizados quando me viram e não queriam acreditar que alguém conseguisse correr numa Montanha tão exigente naquele estado.

No final do objectivo cumprido, como é a fase de recuperação?

Não á fase de recuperação, por exemplo no Alpino Madrileno perdi o comboio para casa e fiquei na estação a descansar deitado num banco fui directo para o trabalho ficando uma semana fora de casa.

Nos 160kms do GRP recebi os prémios e tive que conduzir até Portugal em muito mau estado e no dia seguinte estava pendurado numa corda a trabalhar, para andar só conseguia apoiar os calcanhares tal eram as feridas, chegava à noite e tinha os pés como cepos levei 10 dias até conseguir correr de novo. Para ir aos Pirenéus tive que faltar uma semana ao trabalho e pagar todas as despesas, portanto o ordenado deste mês ainda ficou mais curto.

O próximo grande desafio será no deserto. Quais as tuas expectativas em relação à Maratona des Sables? Vais fazer alguma preparação mais específica para esta prova?

Como atleta de montanha que sou tenho desafios mais imediatos, vencer o Circuito Alpino Espanhol no qual me encontro a liderar.

Terei também a 11 de Dezembro um grande desafio pessoal, correr 200kms sem parar no caminho Português de Santiago, já corri o equivalente a quatro maratonas seguidas nos Pirenéus agora é só mais umaJ.

Será mais que um desafio é uma oportunidade de correr com os amigos nem que seja por alguns kms, haverá também uma componente de solidariedade ajudar as crianças mais desfavorecidas em época Natalícia.

Para 2011 terei dois grandes desafios a Marathon des Sables 250kms e o ultra Trail do Mont Blanc 168kms.

Para Sables a minha grande preocupação vai se prender com a alimentação e logística, esta prova é feita em seis etapas durante sete dias com temperaturas extremas positivas durante o dia e negativas durante a noite, temos que transportar tudo às costas desde o primeiro dia até ao final, a organização só nos fornece água nem tenda temos um simples tolde serve para nos protegermos do sol durante o dia e relento durante a noite, todo o resto temos que planear e transportar como: saco cama, alimentação, kit sobrevivência e higiene, roupas, etc.

È muito fácil atingir 15 kilos de peso na mochila, por cada kilo vezes mil passos tenho que despender em energia o equivalente de arrastar uma tonelada no espaço de um metro, é brutal um verdadeiro teste á capacidade mental no qual sou muito forte.

Para o próximo ano, irás defender a conquista feita nos Pirenéus? E na Maratona Alpina Madrileño, irás tentar melhorar a tua marca? Conta-nos como será a tua próxima época.

Espero um 2011 tão bom ou melhor como este ano, Para além da Marathon des Sables vou apostar no Ultra trail do Mont Blanc, uma prova semelhante à que venci nos Pirenéus que se realiza nos Alpes percorrendo 168 kms por três Países (França, Suíça e Itália), vou também voltar a apostar no Circuito Alpino Espanhol de Maratonas em Montanha entre outras provas de 100 kms como preparação para os grandes desafios MDS e UTMB.

Estou a planear uma grande travessia de 540kms em Portugal, correr o equivalente em média a duas maratonas por dia.

Como alpinista vou continuar a fazer expedições aos Pirenéus e Alpes, para alimentar a paixão e treinar as técnicas alpinas.

Como dirigente associativo e responsável pelo secção de corridas de montanha dos Amigos da Montanha organizei a I ultra Trail AM 55km em Barcelos, no dia 2 de Outubro e espero voltar com a segunda edição.

Prevejo um 2011 com muito trabalho.

Qual a tua prova favorita nacional e estrangeira?

Em Portugal é sem dúvida o Ultra Trail da Freita, adoro correr, escalar e caminhar naquela Serra tem condições únicas para estas actividades.

Organizei também em Barcelos este ano a 1ª edição da Ultra Trail AM que foi uma agradável surpresa, mostrando assim os trilhos por onde o Carlos Sá treina diariamente, acredito que será uma das melhores provas Nacionais.

No Estrangeiro adorei correr Cavalls del Vent e Grand raid dês Pyrênêes, mas o Ultra Trail do Mont Blanc é sem dúvida a prova mais carismática do Mundo onde estarei no próximo ano.

Que provas aconselhas aos atletas de trail running, bem como a corredores de estrada que se queiram iniciar nesta modalidade?

Neste momento é difícil encontrar um fim-de-semana que não aja uma prova de trail running em Portugal, todos os anos surgem novas provas e as que existem com organizações cada vez melhores.

Recentemente fui convidado para colaborar num Encontro Nacional de Organizações de Trail, todos juntos podemos trabalhar de forma a que este desporto continue a crescer desta forma e ser um exemplo organizativo para outras modalidades.

Aconselho o Circuito Salomon, trail AM, trail nocturno da Lagoa de Óbidos, AXtrail, trail de Sicó, etc…. Assim como muitas provas em Espanha muito perto da fronteira, basta fazer uma pesquisa no Google e não falta informação.

Para terminar, que argumentos usarias para convencer os nossos leitores a aderirem às corridas de montanha?

Se gosta de natureza e de montanhas, se faz desportos de resistência, se a superação é um estilo de vida, se define objectivos e trabalha para os conquistar, o Trail e o teu espaço de eleição

Nas maratonas ou ultra-maratonas a grande vitória è concluir; terminar com a consciência que demos o nosso melhor e superamos o desafio; essa é a grande satisfação que temos na conclusão destas provas extremas.

Se eu consigo vencer, superando-me, demonstrando resiliência e capacidade de trabalho;

Tu também consegues vencer os teus pequenos/grandes desafios

Perfil

Nome: Carlos Sá

Data de nascimento: 24/12/1973

Naturalidade: Portuguesa

Clube: Amigos da Montanha

Profissão: Alpinista Urbano

Hobbies: Montanhismo e suas variantes como: Corrida, Escalada, Alpinismo, Travessias, BTT.

Objectivo, Top 10 MDS, Top 5 UTMB e escalar o Everest sem recurso a oxigénio artificial.

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